Ricardo Kosovski faz de ‘Tripas’ o espetáculo da sua vida

11 julho 2018 |



Muitas pessoas se tornam mais fortes na vida depois de sobreviver a uma experiência sofrida em sua saúde. Uma delas é o ator Ricardo Kosovski. Ao superar um problema transformou a realidade em teatro e, consequentemente, deu a volta por cima: além de recuperar a saúde, lançou um espetáculo que traceja seus momentos de luta e traduz, em atos cênicos, algo que leva o público a refletir sobre a importância da vida. “Tripas” foi o nome definido para sintetizar toda uma história real que virou trama.

Mais um trabalho com apoio de seu filho, o ator e diretor Pedro Kosovski, já esteve em cartaz no Sesc Copacabana, no Rio de Janeiro, terminou temporada no Sesc Ipiranga, em São Paulo, no último fim de semana e, logo, estará em Santa Catarina e no Uruguai. A procura é tanta para assitir a uma apresentação que, segundo Ricardo, termina a temporada e muitos não conseguem, pois a ideia é um público reduzido estar presente para absorver a temática.

Em entrevista exclusiva ao CULTURA VIVA, Ricardo fala de sua carreira, do privilégio de trabalhar em família e sobre a situação do teatro brasileiro, dentre outros assuntos.

Acompanhe!

CULTURA VIVA: Esse ano você comemora 40 anos de carreira. Passa um filme em sua cabeça? Que recordação, em específico, destaca?
RICARDO KOSOVSKI: Na realidade é um tempo longo com variadas experiências. Tenho a sensação de que de que a vida é uma coisa muito generosa porque nos permite várias vidas dentro de uma vida, em específico. Reconheço que o Ricardo de 40 anos atrás é completamente diferente do Ricardo de 30 anos atrás e, cada tempo vivido, teve a sua beleza e a sua exuberância. Realmente, olho para trás e, hoje, me sinto uma pessoa muito mais tranquila em relação ao trabalho e, muito mais segura daquilo que eu estou fazendo. Mas, isso não tira o frescor de cada estreia, o nervoso e a ansiedade que uma estreia me permite por um novo trabalho, um novo desafio. Então, isso é uma coisa que não se modifica ao longo dos anos. Olho para mim e vejo um artista que, ao longo dos anos, procurou compartilhar sua arte e procurou ser generoso com o público porque dependemos dele, e procurou ser coerente com seu próprio percurso ético-político diante dos acontecimentos da vida.  
C.V.: Para comemorar esses 40 anos de estrada, lançou a peça “Tripas”, no Sesc Ipiranga, em São Paulo. O que a trama tem a ver com sua carreira?
R.K.: Tripas”, na verdade, estreou no SESC Copacabana, no Rio de Janeiro, em outubro do ano passado. A partir da temporada carioca, que é onde a gente mora, ou seja, é a nossa base de trabalho, fomos convidados a ir para São Paulo. A trama tem tudo a ver com a minha carreira! Na realidade, o espetáculo Tripas, que é um espetáculo muito singular porque foi escrito a partir de uma experiência muito radical que eu tive de vida, de uma situação entre a vida e a morte e, nesse momento de dificuldade, meu filho me disse: “Pai, quando você ficar bom nós vamos fazer uma viagem pelo mundo para uma peregrinação espiritual em busca da nossa ancestralidade. Efetivamente, quando fiquei bom, fizemos essa viagem e, durante o percurso, nós percebemos que poderíamos responder, artisticamente, ou seja, fazer um trabalho de fato. Nossa ideia foi acolhida pelo Sesc e, realmente, esse trabalho ele tem um caráter muito importante porque eu quase perdi minha vida mesmo. Esse trabalho foi uma espécie de cura espiritual e cura física, onde tenho uma intensidade física, vocal, psíquica muito forte e, como disse meu filho, “pai você só vai ficar curado o dia em que você fizer uma peça falando sobre essas coisas” – uma espécie de resgate de um certo teatro curativo, como acontecia na Grécia, no Centro da Pólis, isto é, uma convergência de encontro de pessoas, onde todos iam ao teatro como um lugar de encontro, um lugar de cura. Eu e Pedro até brincamos: estamos querendo refundar o TBC (Teatro Brasileiro de Cura) – uma  alusão ao Teatro Brasileiro de Comédia (risos). Mas, esse espetáculo é uma virada em minha vida e em minha carreira artística. Tive o privilégio de dessa vivência com meu filho – que não é qualquer pai que consegue compartilhar com filho experiências profissionais, sobretudo, experiências artísticas – por m serem muito contundentes. Agradeço muito porque a vida me proporcionou uma restauração, o revigoramento e uma força muito grande para tocar a vida e o trabalho artístico daqui a frente.

 C.V.: No espetáculo você contracena com seu filho Pedro Kosovski. É a primeira vez que atuam juntos? Como tem sido essa oportunidade?
R.K.: No espetáculo eu não contraceno com o Pedro, propriamente. Ele está em cena, mas não é uma contracena, propriamente. Quem assistir ao espetáculo vai entender melhor. Já trabalhamos diversas vezes. Quando ele era pequeno o inseri em um espetáculo com meus alunos no tablado. Ele tinha três anos, apenas. Depois, posteriormente, tivemos uma ou outra experiência onde a gente se esbarrava em espetáculos. Ele foi meu assistente no tablado durante algum tempo. Fizemos, dentro da companhia dele, o espetáculo “Cara de Cavalo”: ele como dramaturgo e eu como ator. É sempre uma experiência muito rica. Eu também já o dirigi num espetáculo muito premiado chamado “Encantos de Oscar Wilde” – uma adaptação da Rosane Frota para contos de Oscar Wildes: ele como ator e eu, diretor. É sempre uma experiência muito rica trabalhar com seu filho; a gente consegue transcender a questão relacionada entre pai e filho. Daí, você observa que está diante de um artista que, por acaso, é o seu filho. É uma coisa muito bacana! Uma experiência muito singular e muito privilegiada. 
C.V.: Além de tudo o texto foi escrito pelo Pedro e a peça é dirigida por ele. Que presente para um pai, não é mesmo?
R.K.: É um super presente, é mais que o presente: um privilégio que a vida proporciona porque isso não se combina. Esse tipo de encontro não é combinado, isso acontece na vida. Mas, a questão é que não é uma situação entre pai e filho; a questão é que são dois artistas que transcendem a sua consanguinidade e é lindo você poder ver um filho num ambiente de criação e, do mesmo modo, o filho olhar o pai num ambiente de criação, num ambiente artístico aonde existe um diálogo no âmbito da criação. É uma coisa muito bacana mesmo. Você consegue ultrapassar aquele vínculo, aquele laço familiar e, numa situação curiosa porque, na vida, em geral é o pai que dirige o filho, não é? No Teatro eu me permiti ser dirigido por ele, quer dizer, eu vivo duplamente essa possibilidade desse laço de criação artística. Um privilégio que a vida me deu. 
C.V.: Como analisa a realidade do Teatro Brasileiro, atualmente?
R.K.: Eu acho muito complexo a gente falar sobre a realidade do teatro brasileiro porque, na realidade, quando a gente fala de Brasil, de Cultura, de incentivos à Cultura... Quando a gente fala em valores destinados à cultura num país com a dimensão condimental do Brasil não existe uma unidade, existem vários brasis aqui dentro. Então, você vê que a realidade do Norte é uma, a realidade do Nordeste é outra e, assim, consequentemente, e mesmo dentro dessas realidades regionais, a gente vê que a realidade das grandes cidades são realidades artísticas muito distintas, tanto em condições de produção quanto em verbas. Eu posso falar da cidade do Rio de Janeiro. Acho que, nós aqui, nunca tivemos uma situação de tanta penúria, tristeza,  desamparo, desrespeito, tanta mentira política em relação a todo suporte que o teatro pode ter em todos os âmbitos, tanto teatro comercial como teatro experimental, teatro de grupos, teatro feito nas periferias, enfim. O Rio é um lugar de ninguém. É uma terra desértica.  Não existe a mínima intenção nem suporte do ponto de vista do Estado de se propiciar ou estimular os artistas a fazerem teatro. Em contraponto a isso, o que se vê são propostas, absolutamente, de resistência: As pessoas tiram dinheiro do seu bolso para fazerem o seu teatro, para circularem com propostas de produção e de circulação. É quase uma guerrilha quando você é atacado ou está com bombas voando sobre a sua cabeça e se protege. Mas, para você se proteger é porque teme a bomba cair sobre você. As pessoas estão ativas, estão se articulando; o que ocorre é que o teatro aqui e as peças ganharam dimensões de produções sempre menores. Produções pobres, no sentido grotowskianos, mas um teatro vivíssimo. Produções maravilhosas que estão acontecendo a reboque de muita dificuldade. O Rio de Janeiro nunca esteve tão ruim em todos os aspectos. Nunca tivemos um descaso tão radical como estamos vivendo agora. Em contraposição, por exemplo, São Paulo – não estou querendo fazer nenhum elogio especial à cidade, mas eu sempre trabalhei muito no eixo Rio-São Paulo: são os eixos principais e o eixo aonde nasci. Eu sempre trabalhava em São Paulo, mas com aquela nostalgia do Rio de Janeiro com sua beleza natural, a simpatia das pessoas, a estrutura agradável. Agora ficou uma disparidade: São Paulo ainda mantém o nível de produção, sobretudo, através da rede Sesc e, também, da rede Sesi, que são muito poderosos e respeitosos com os artistas e, por exemplo, saímos do Rio e fomos para São Paulo. Lá existem termos de comparação em termos de respeito ao seu trabalho, crítica ao seu trabalho, estrutura de produção e público para assistir. Então, o que eu percebo é que, no Brasil de modo geral, a produção teatral não é uma prioridade dos governos que encaram a cultura como uma coisa secundária. O que é um pensamento absolutamente tosco e equivocado: cultura é tão importante quanto saúde, educação ou segurança pública. Ter um teatro e ter um hospital são coisas do mesmo grau de importância porque a cultura te afirma como cidadão, te diz quem você é; você se espelha ali; se fortifica. Nunca houve, no Brasil, somente em pequenos momentos, uma política de valorização. As diferenças das regiões são muito grandes. Nós ainda temos um circuito e alguns pequenos bolsões de atividades teatrais que permanecem muito forte, como o circuito dos festivais, as universidades federais, também, nos últimos anos, tem amplificado através da própria amplificação da pesquisa em teatro com criação de doutorados, mestrados em artes cênicas espalhados pelo Brasil todo, também fez com que as universidades públicas começassem a adquirir equipamentos e espaços cênicos importante. Isso é uma novidade, é uma coisa que observo – eu tenho vida acadêmica também; aliás, tenho vida artística e vida acadêmica, mas do ponto de vista do teatro brasileiro, a gente sobrevive à base das intervenções e dos projetos articulados por coletivos guerreiros que enfrentam essa política quase que malévola que afronta o artista, que é contra o artista, que não o apoia. Triste do país que não apoia o seu artista. 
C.V.: O que espera como futuro para o Teatro?
R.K.: Eu espero que o futuro para o Teatro seja o melhor possível. Eu acabei de desenhar um quadro muito ruim e que não é só no âmbito do teatro, mas no âmbito do nosso país. Agora, o que eu espero é que tudo melhore, que as pessoas se esclareçam, que saia dessa nação essa nuvem negra que nos obscurece e nos tira a inteligência. Eu espero, realmente, sobretudo no Rio de Janeiro, que passe esse momento tão difícil e que o artista seja devidamente valorizado. É uma questão de valorização e, quando eu falo em valorização, não é só a questão da valorização financeira de você ter recursos, não, é uma valorização de cidadania e compreender que o trabalho do artista e, sobretudo, o trabalho do artista cênico é fundamental para termos um país decente, um país justo, um país igual para todos. É isso que eu espero para o futuro. 

C.V.: Nesse mês de julho o espetáculo “Tripas” encerra sua temporada no Sesc Ipiranga. Vai dar prosseguimento em outro lugar?
R.K.: Sim, nós temos uma intenção de manter o “Tripas” em cartaz durante muito tempo; nós temos vários convites, inclusive convites internacionais; todas as nossas temporadas foram muito bem sucedidas: pessoas bastante articuladas bem informadas se interessaram pelo espetáculo e temos vários convites. Queremos, ainda, refazer agora nesse segundo semestre de 2018 uma nova temporada aqui na cidade do Rio de Janeiro porque como são poucos lugares o espetáculo é dirigido a uma plateia muito restrita, muita gente queria assistir e não conseguiu. Então, temos a ideia de retomar uma temporada aqui na cidade do Rio de Janeiro. Temos convites de alguns festivais, algumas coisas que estamos estudando, entramos em editais da Caixa para circulação do Sesi, ou seja, a gente vai circular por muito tempo com o espetáculo; acabamos de receber agora aqui um convite de levar os espetáculo no que vem para Moscou para um festival de monólogos, a convite de uma pessoa que é ligada a assuntos culturais Brasil-Rússia que ficou muito tocada pelo espetáculo e está bastante empenhada em nos levar para lá, e tem várias coisas que estão sendo trabalhadas nesse sentido, mas certamente o espetáculo é uma temporada que se estende. Um grande amigo meu, o ator Fernando Eiras, lá em São Paulo, me falou o seguinte: “Ricardo, você conseguiu fazer o espetáculo da sua vida”. Esse é o objetivo de todo ator. Fazer o espetáculo da vida significa fazer um espetáculo que é eterno. Então, para mim, “Tripas” será eterno enquanto dure; talvez, enquanto eu dure.
Fotos: Divulgação
 
 
 


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